quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Um Presente de Natal - 4º Capitulo

As casas de Marta e de Leonardo eram as únicas construções daquela região. Cada aposento dava vista para o vale, e as montanhas ao redor aumentavam a sensação de isolamento. Era difícil acreditar que a menos de vinte minutos  daquele  lugar viviam milhões de pessoas.
  A mobília tornava o ambiente ainda mais aconchegante. Na sala de estar, o sofá macio era um convite ao descanso. Uma estufa de  pedra, ferro e bronze ficava a um  canto.
  — Você costuma usá-la? — perguntou Fernando.
  — Todas as noites.
  No quarto de Leonardo, a cama de casal despertou-lhe fantasias quase de adolescentes. Ele desviou o olhar, procurando afastar também os pensamentos eróticos, e pousou-o  na  lareira.  Típica dos anos sessenta era feita de ferro, e a chaminé, aparentemente mal colocada, possibilitava a infiltração de água na parede branca.
Certamente Leonardo tinha problemas quando chovia.
  — É a única coisa de que não gosto na casa — disse Leo.
— Eu adoraria ter uma lareira, mas não desse tipo.
  Fernando estudou a peça e  o espaço que ocupava. Oh, sim, ele também adoraria ter uma lareira no quarto, para poder relaxar na cama à noite, depois de ter feito amor, observando as chamas...
  — Bem — começou a dizer, limpando a garganta —, não será difícil consertar a chaminé. Quanto à lareira, pode ser substituída por uma estufa de pedra, a gás ou... — aproximou-se da parede — por uma  lareira de canto. — Inclinou-se, pegou a trena e mediu  as  distâncias. — Por que você não compra uma dessas que já vêm prontas e desmontadas? São fáceis de instalar.
  Leonardo o encarou com curiosidade.
   — Você fala como se estivesse acostumado a montá-las.
   — Fiz isso algumas vezes. — Endireitou-se e recolocou a trena no cinto. — Há cerca de doze anos, trabalhei com construção civil, para pagar a faculdade de direito. Assim, conheço alguma coisa sobre reparos básicos e reformas. Meu filho e eu comprávamos casas velhas, arrumávamos tudo, vendíamos e começávamos tudo de novo. — Deu uma risada. — Acho que esse tipo de vida encorajou-o a abandonar a escola e alistar-se na Marinha. Assim, pode viver bem longe de casas, prédios e, principalmente, reformas.
   Ele e o filho... Ninguém mais.
   — Deve ser difícil, para você, fazer esse trabalho hoje em dia. Afinal, agora vive sozinho... — ele arriscou, numa tentativa quase direta  de descobrir se Fernando estava casado.
   — Felizmente, posso contar com a ajuda dos amigos — ele explicou, seguindo-a até outro quarto.
   — Está reformando alguma casa atualmente?
   —Acabei uma há pouco tempo, mas não sei quando vou vendê-la.
   Leo sorriu.
   — Acha que é muito agradável e tem pena de desfazer-se do imóvel?
   — Não é bem assim. Digamos que estou cansado de viver em meio a reformas e que o incentivo financeiro já não é tão grande. Não pretendo vendê-la até encontrar a casa onde passarei o resto  da vida.
   Quando a porta do aposento  foi aberta, um gato branco e alaranjado pulou de uma cadeira, assustado. Fernando tentou acalmá-lo, mas o animalzinho mostrou-lhe as garras.
   — Tamale! Quer parar de se exibir?
   — Tamale? Mas  esse era o nome  do salgadinho espanhol que aquele homem  vendia na hora do almoço! Você também o comprava?
   Ambos riram.
   — Está se  referindo ao vendedor que ficava na praça, entre o Tribunal de Justiça e o hospital, vinte e cinco anos atrás?
   — Isso mesmo! Aquele que fez  o maior sucesso até as pessoas descobrirem que os gatos da cidade  estavam desaparecendo misteriosamente...  
   — Quer saber de  uma coisa? Nunca admiti a ninguém, mas aqueles foram os melhores tamales que já  comi na vida.
   Fernando deu uma gargalhada.
   — Eram bons  mesmo. — Fez uma pausa. — E quanto a seu gato? Está com você há muito tempo?
   — Tamale veio morar aqui um dia depois que me mudei. Abri a porta, ele entrou e ficou.
   — Bem, Tamale — disse Fernando, dirigindo-se ao bichano —, espero que você saiba que é um cara de sorte.
   "De muita sorte", pensou.
   — Acho que, para ele, quem tem sorte sou eu.
   Ao voltar para  a cozinha, Fernando parou junto à porta e olhou em volta.
   — Sabe, a maioria das casas que conheço são iguais à minha, ou seja,  têm  apenas paredes e teto. Mas a sua é diferente.
Tem personalidade. Vida. Diga-me, demorou muito tempo para encontrá-la?
   Leonardo balançou a cabeça negativamente e sorriu.
   — Nem precisei procurar por ela. Vi a placa de "Vende-se" na estrada, negociei minha velha casa e, quando percebi, já estava fazendo a mudança.
   Era meio estranho, mas não havia outro jeito de explicar o inexplicável. Como dizer àquele homem que ele e a casa haviam sido feitas um para o outro?
   Quando Fernando sorriu, Leonardo descobriu que, de alguma maneira, ele compreendera. Saboreou aquele momento de comunicação perfeita, sem palavras, do tipo que costuma  ocorrer entre pessoas que se conhecem há muitos anos, não com dois estranhos.
   Fernando entrou na cozinha e foi direto até a fotografia que ficava na prateleira sobre a pia.
   — É sua filha?
   Leonardo assentiu com um movimento de cabeça.
   — Sim, é Victoria.
   — Muito bonita. Mas não parece  ser sua filha. Parece sua irmã mais nova.
   — Oh, obrigado!
   Fernando recolocou  o porta-retratos na prateleira.
   — E por que ela não vem passar o Natal aqui?
   — Porque  estará muito ocupada em dezembro. Decidiu vir em fevereiro, quando terá mais tempo. — Forçou um sorriso.
— Fui até São Paulo, onde Victoria vive. Por isso, não faz mal que não nos vejamos no  Natal.
   Ele notou, pelo tom entristecido, que Leonardo preferia ter a filha por perto numa data tão significativa.
   — Meu filho também não virá. É a primeira vez que vocês dois passam o Natal em lugares diferentes?
   —  Sim, é. — Desgostoso, ele sentiu um nó na garganta e uma súbita  vontade de chorar. Para disfarçar, concentrou-se na persiana amarela da janela, tentando arrumar o controlador de lâminas, que nunca permanecia no lugar. — Jamais consigo ajeitar isto aqui —  murmurou.
   Fernando estendeu a  mão e pressionou o  controlador com dois dedos. Ouviu-se um  pequeno clique, e o acessório ficou perfeito.
   — Os objetos têm lá seus truques...
   — É, percebi. Obrigado. — Abaixaram os braços no mesmo momento, e  por um segundo ele teve a sensação de que Fernando iria envolver-lhe  os ombros. O  pior foi  que desejou ardentemente que ele o fizesse. — Bem, agora só falta ver a área de serviço — falou, para afastar aquele sentimento incômodo.
   Mostrou-lhe o local estreito, onde havia portas que levavam à garagem e ao pátio dos fundos. Pronto. A excursão estava terminada. Leonardo virou-se para voltar  à cozinha, mas Fernando não o seguiu. Parou junto à secadora e  pegou um objeto que se encontrava sobre o tampo.
   — Este é o novo  interruptor da secadora?
   — Sim, é. Eu ia  instalá-lo esta noite  e...
   Ele pegou a chave de fenda e, sem demora, começou a desapertar um parafuso  no  painel da máquina. Constrangido, Leonardo lembrou-se das coisas que dissera  a Papai Noel na noite da festa. Teve de se controlar ao máximo para não esconder o rosto vermelho  nas mãos, nem sair correndo.
   Se aquele homem tentava embaraçá-lo, estava conseguindo.
Observou-o com olhos estreitados, mas não viu nenhum sinal que indicasse isso. Afastou-se, para lhe dar mais espaço, quando o viu retirar o painel. Nesse momento, uma dúvida passou-lhe pela mente:  Fernando Herodes estaria fazendo aquilo para ganhar sua simpatia? Em outras palavras, tentava flertar com ele?
   Se  isso fosse verdade, tinha de reconhecer que ele agia com muita naturalidade.  Fora assim quando, durante o  passeio pela casa, Fernando consertara a torneira do lavabo, que não parava de pingar, ou quando regulara as dobradiças da porta do closet, para mantê-la bem fechada. Para cada problema, encontrava uma solução.
   — Você tem fita isolante? — ele perguntou.
   — Acho que sim.
   Leonardo a encontrou numa  das gavetas da cozinha e entregou-a a Fernando, que rapidamente envolveu os fios desencapados com ela e instalou o interruptor. Em seguida, recolocou o painel.
   — Estou surpreso por você não ter chamado um eletricista.
   Leonardo sorriu.
   — Sou incapaz de pagar dez vezes o preço do interruptor para que alguém o instale. Ele custou cinco Reais, e a empresa de reparos queria cobrar cinqüenta para colocá-lo na secadora.
   — Que exagero!
   O respeito que Fernando sentia por ele cresceu. A maioria dos gays teria pagado os cinqüenta Reais. Apertou o último parafuso,  guardou a chave de fenda no cinto de ferramentas e, com um polido gesto de cabeça, dirigiu-se ao lavabo, para limpar as mãos.
   Como o espaço da área de serviço era pequeno, o peito largo tocou o de Leo ao sair dali, o  que  o  fez sentir um arrepio de prazer. No momento em que Leonardo alcançou o lavabo, ele terminara de se limpar e procurava o  cesto de lixo para jogar a toalha de papel, que usara para enxugar-se.
   — Obrigado pela ajuda. Muito obrigado mesmo.
   — Não precisa agradecer.
   — Conseguiu consertar o carro de Marta?
   — Dei um jeito. Na verdade, porém, Marta precisa de um automóvel novo.
   — A hipoteca reversa vai dar a ela algum tempo,  mas não resolverá o problema, não é?
   Ele balançou a cabeça num gesto afirmativo, a fisionomia séria.
   — Vou conseguir um investimento que a ajude a obter uma pequena renda. Mas o dinheiro que ela tem é tão pouco...
   A despeito da gravidade da situação, Leonardo acreditava que Fernando acabaria encontrando um meio de garantir o futuro de Marta.
   Ele  consultou o relógio e,  relutante, decidiu que era hora de partir.
   — Bem, preciso ir. — Abriu a porta da frente da casa e deteve-se. — Obrigado pelo chá. E pela excursão.
   Sentindo-se estranhamente tímido, Leonardo forçou um sorriso.
   — Eu é que agradeço. Pela ajuda e... pelas azeitonas.
   — Ora, foi um prazer.

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