sábado, 3 de dezembro de 2011

Um Presente de Natal - 3º Capitulo

Leonardo observou que o sabonete branco, com que lavava as mãos, tornara-se preto. Limpar chaminés era menos complicado do que imaginara, mas em compensação fazia uma sujeira inacreditável.
   Quando fechou a torneira do banheiro, percebeu que alguém tocava com insistência a campainha. Enxugando as mãos numa toalha, correu para a entrada da casa. Ao abrir a porta, viu que Marta já desistia de esperar.
   Olá, Marta! Deixe-me adivinhar: você veio até aqui porque me viu no telhado com essas roupas maravilhosas e quer saber onde as comprei certo?
   A velha senhora olhou para os cabelos desgrenhados, o jeans e a camiseta pretos de fuligem, e caiu na gargalhada.
   Certo.
   Por cima do ombro dela, Leonardo viu uma enorme picape prateada.
   De quem é aquela caminhonete? perguntou.
   Minha respondeu Fernando Herodes, aparecendo no jardim.
Como você não aparecia, decidi tentar a porta dos fundos.
   Ele vestia o traje típico dos sábados: jeans velho, camisa de flanela azul-clara, tênis e boné.
   Leonardo, Fernando veio dizer o que devo fazer em relação a meu problema com os impostos explicou Marta. Achei que você gostaria de ouvir.
   Ah, então ela já o tratava por "Fernando"!
   Claro que gostaria respondeu Leonardo, fitando-o do modo mais sério que conseguiu.
   Um minuto mais tarde, os três atravessavam o terreno que separava as duas residências. Leonardo notou que ele amparava Marta, segurando-a pelo cotovelo, e que tirou o boné assim que entrou na casa da velha senhora. Aprovou silenciosamente a gentileza, que a maioria dos homens não fazia mais.
   Marta os deixou na sala e foi para a cozinha, preparar café.
Tentando evitar contatos e conversas, Leonardo concentrou a atenção no aposento, que estava um tanto mudado. Havia menos móveis ali. A mesa e as quatro cadeiras, impecavelmente limpas, pareciam ainda menores sem a mobília adequada para acompanhá-las.
   Se não me engano, devia haver um bufê aqui disse Fernando, olhando para um espaço vazio numa das paredes da sala de jantar.
   Ou um armário acrescentou Leonardo. Parece que estão faltando várias peças nesta casa.
   Com certeza.
   Os dois contaram outros doze espaços onde, indicava a pintura menos desgastada pelo tempo, deviam ter havido alguns móveis. Aquela ausência, de alguma forma, tornava ainda mais triste à decoração natalina que Marta fizera.
   Leonardo atravessou a sala e foi até o corredor que levava aos quartos.
   O hall e o primeiro quarto também perderam parte do mobiliário disse em voz baixa ao voltar para junto de Fernando.
   Marta entrou naquele instante, carregando uma bandeja, e sentou-se ao lado de Leonardo, no sofá.
   O que aconteceu com seus móveis? perguntou Fernando.
   Eu os vendi depois que fraturei os quadris. A maioria era antiga, e consegui um bom preço por eles.
   Leonardo viu que os lábios de Fernando apertavam-se numa linha estreita e ficou surpreso. Imaginara-o um homem bonito, mas sem coração, e agora percebia que se enganara.
   A velha senhora os serviu e colocou a bandeja numa mesinha barata, entre os dois sofás.
   Muito bem, pode me dar às más notícias, Fernando.
   A mulher trêmula e assustada que visitara o escritório dias antes dera lugar a Marta de sempre, forte, cheia de vitalidade, preparada para enfrentar as dificuldades da vida.
   Dadas as circunstâncias, o governo não moverá nenhuma ação contra você nem lhe tirará a casa. Haverá um prazo maior para o pagamento dos impostos, sem os juros...
   O governo coisa nenhuma! É você quem está tomando essas providências interrompeu-o Marta. Foi por fazer coisas assim que seu antecessor ficou em apuros, meu jovem.
De mais a mais, não vou permitir que aja dessa maneira. Não aceito caridade. Vou pagar minha dívida com juros e tudo.
   Não se trata de carida...
   Marta levantou a mão, fazendo com que Leonardo parasse de falar.
   Não adianta Leo meu querido. Sei que tenho um orgulho bobo, mas estou velha demais para mudar. Virou-se para Fernando.
Vou aceitar só uma parte de sua oferta. Se suspender o arresto da casa, poderei vendê-la e saldar a dívida.
   Leonardo e Fernando trocaram um olhar frustrado.
   Isso resolveria o problema disse ele. Seria possível levantar o dinheiro necessário.
   pontapé nas canelas.
   No entanto... começou a falar, mas ele o interrompeu.
   Se vender a casa, porém continuou Fernando , terá outro problema. Onde vai morar?
   Acharei um apartamento na cidade. Eu devia ter me mudado daqui a muito tempo.  Apontou para a casa onde morava havia quarenta anos como se não se importasse em perdê-la.
Mas estava fingindo. Leonardo notou que as mãos de Marta tremiam.
   Compreendo disse Fernando, num tom solidário. A casa ficou muito grande para você, certo? Grande demais para limpar, com um jardim exagerado para cuidar...
   Sim. Quer dizer, não! Marta lançou-lhes um olhar de frustração. Acontece que não tenho outra saída.
   Leonardo sentiu lágrimas nos olhos. Era melhor que Fernando encontrasse logo uma solução para aquilo.
   Você pode fazer uma hipoteca reversa. Já ouviu falar nisso?
   Marta assentiu, movimentando a cabeça.
   Leonardo me deu um folheto sobre o assunto ontem à noite.
Alguém, geralmente por caridade, compra sua casa, mas permite que você more nela se pagar uma certa quantia por mês. Acontece que já tenho uma hipoteca, e não acho que possa pagar uma segunda dívida.
   Conversei com duas pessoas que fazem empréstimos para casos assim. Você não precisará pagar as mensalidades agora, visto que ainda tem a velha hipoteca. Mas haverá dinheiro suficiente para isso e para os impostos. "Sem os juros", pensou Fernando.
 Marta e Leonardo trocaram olhares desconfiados. Seria tão fácil assim? De repente, o rosto da velha senhora iluminou-se com um sorriso. Em seguida, ela enlaçou Leonardo num forte abraço.
   Oh, querido, não vou perder a casa!
   Não, não vai Leonardo respondeu discretamente.
   Marta parecia ter rejuvenescido vinte anos. Aproximou-se de Fernando e também o abraçou.
   Obrigada, filho. Deu-lhe um beijo no rosto.  É o melhor presente de Natal que já recebi.
   Ora, não precisa agradecer.
   Os olhos de Fernando encontraram os de Leonardo. Hesitante, ele lhe retribuiu o sorriso. Uma hora atrás, sabia exatamente o que pensar daquele homem, mas agora... Bem, agora não sabia mais nada.
   Não sei nem expressar o que isso significa para mim prosseguiu Marta. Sinceramente, eu gostaria de lhe agradecer de alguma maneira.
   Gentilmente, ele lhe tomou as mãos.
   Vou lhe dizer como. Antes de pedir financiamentos, empréstimos ou coisas assim, fale comigo. Promete?
   Prometo foi a resposta solene. Bem, estou morrendo de fome. Alguém quer almoçar?
   Fernando aceitou no mesmo instante.
   Agradeço, mas preciso terminar a limpeza da casa disse Leonardo, analisando criticamente a própria aparência. Havia se esquecido de que estava com roupas apropriadas apenas para fazer faxina.
   Quando levantou a cabeça, deparou com os profundos, instigantes olhos verdes de Fernando Herodes.
   Tem certeza? insistiu Marta, a meio caminho da cozinha.
   Tenho ele respondeu, desviando o olhar e dirigindo-se à porta.
   Então o ouviu dizer à velha senhora:
   Vou dar uma olhada em seu carro e verificar por que está demorando a pegar.
   Leonardo deu mais dois passos e percebeu que ele vinha logo atrás.
   O que é isso? Fernando perguntou.
   Leonardo, a princípio, fingiu não escutar. Depois, percebendo que essa era uma atitude infantil, virou-se e viu que ele apontava para alguns velhos documentos, emoldurados e colocados sobre uma mesinha.
   Oh, são certificados que Marta herdou de um tio advogado. O município emitiu esses papéis quando o Minas Gerais ainda era um território, e portanto eles não têm nenhum valor, mas... passou um dedo numa das molduras que protegia os documentos ...como são muito bonitos, Marta decidiu usá-los na decoração da casa.

   Leonardo procurava pela toalha de papel quando a campainha soou. Na certa era Marta, que vinha dar mais detalhes sobre os planos para salvar a casa. Abriu a porta e ficou surpresa ao ver  Fernando Herodes, segurando um vidro  de azeitonas  pretas enormes e saborosas.
   O armazém  estava cheio delas.
   Leonardo olhou para  o vidro e para a mão  enorme que o segurava. Para ser honesto, tinha de reconhecer que o comportamento daquele homem, nos últimos dias, vinha sendo exemplar. Sorriu e aceitou o presente.
   Obrigado. Devem ter custado muito caro.
   Ainda bem que gostou.
   Fernando não fez um único movimento para sair dali. Sem jeito, ele rolou o  vidro entre as mãos.
   Eu... ia fazer um chá. Quer me acompanhar?
   Fernando odiava chá, mas aquele não era o momento para confessar isso.
   Quero, obrigado.
   Ao entrar no terraço, a primeira coisa que viu foi um enorme vaso de flores sobre um velho lavatório. Acima do móvel, numa larga e comprida fita  vermelha, estava pendurado um número impressionante de cartões de Natal.
   O terraço ladrilhado levava à sala de estar. Do lado direito, havia um longo corredor, por onde se chegava aos quartos. Do esquerdo, um pequeno hall antecedia a cozinha.
   Você não precisava se incomodar em trazer as azeitonas.
O  que fez por Marta foi suficiente.
   Aquilo foi por Marta. O presente de hoje é para nós.
   Para nós.  Não havia  nós na história, mau um arrepio a percorreu à simples idéia de que poderiam vir  a ter  algum envolvimento.
   Tem certeza de que quer apenas chá? Posso preparar outra coisa.
   Não há necessidade. Eu me contento com chá.
   Ele se recostou no balcão, longe de Leonardo. Sentia-se ótimo.
A cozinha, clara e ampla, fora decorada para o Natal.
   Ele encheu uma panelinha com água e a levou ao fogo.
   Minha chaleira deve  estar numa das caixas que ainda não  consegui abrir. Se eu  tiver sorte, irei encontrá-la até o Natal explicou,  com um sorriso.
   Notou que Fernando usava um cinto repleto de ferramentas e imaginou que ele andara mexendo novamente no carro de Marta.
   Por que não esquenta a água no microondas? É muito mais rápido.
   Tem razão. Acho que não o uso com a freqüência devida.
   Transferiu a água para um pote de plástico resistente, levou-o ao forno de microondas e virou-se.  O sorriso que viu nos lábios de Fernando o fez esquecer, por um momento, o que ia dizer.
Balançou a cabeça, procurando se concentrar.
   Não foi você  quem  escreveu aquela carta a Marta, foi?
   Não. Mas estava assinada por mim.  Eu devia saber o que continha. Precisava ter lido antes de enviá-la.
   Imagino que outras pessoas tenham recebido cópias da carta...
   Ele riu, constrangido.
   Quase trezentas.
   O forno emitiu um som agudo, avisando que a água já estava quente. Leonardo retirou o pote, colocou dois saquinhos de chá em duas xícaras, encheu-as com o líquido e entregou uma a ele.
   Se eu não o tivesse descoberto naquela roupa de Papai-Noel, você iria me contar a verdade?
   Assim que encontrasse um jeito de ajudar Marta. Eu imaginava que seria melhor ter alguns pontos a meu favor antes de esclarecer o engano.
   Não passou por sua cabeça que eu pudesse ficar sabendo da verdade por outra pessoa?
   Cheguei a pensar nisso. Mas ninguém sabia que eu havia desempenhado o papel de Papai Noel. Assim, considerei que, quando lhe contasse, depois de  ajudar Marta, você não fosse ficar muito furioso.
   Ele sorriu, divertido, e pegou duas colherinhas de prata de uma das gavetas do armário. Em seguida, procurou pelo açucareiro.
     Se quiser misturar com um pouco de leite... falou.
     Não, obrigado. Basta o açúcar.
   Ao mexer o chá, ele deu um suspiro aliviado. Com os casos da carta e de Papai Noel superados, podia pôr em prática seus planos. Viu-o colocar a caixinha de chá sobre a pia, num movimento que revelou as curvas do peitoral e dos quadris. Sentiu um súbito calor. "Vá devagar, meu caro", lembrou a si mesmo.
"Não  tenha pressa."
   Leonardo terminou o chá e colocou sua xícara sobre  a pia.
     Quer mais?
     Não, obrigado ele respondeu, repetindo o gesto que Leonardo acabara de fazer. Nesse  momento, reparou num prato de comida sobre o mármore. Ei, você costuma comer em cima  da pia?
     Na maioria das vezes. Só ponho a mesa em ocasiões especiais. E  você?
     Parece que temos hábitos parecidos.
     É mesmo?
   Leonardo sorriu. Pessoas que comiam na pia geralmente viviam sozinhas. Devia ser esse o caso de Fernando. Ele não usava aliança, mas isso não queria dizer nada. Não que o estado civil daquele homem lhe importasse, claro.
     A diferença é que minhas refeições são feitas sob a luz suave da geladeira aberta.  Não acha sofisticado? zombou.
   Ah, então ele morava só! Ou será que a esposa viajava muito?
     Quer conhecer o resto da casa? perguntou, ao perceber que ele não  iria embora tão cedo.
   Procurando disfarçar a alegria, Fernando respirou fundo, tentando não gaguejar ao responder:
     Sim, claro.

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