_____O próximo!
A fila andou, e Leonardo Ravagnolli deu mais um passo em direção ao guichê. O dia não fora dos melhores. O despertador resolvera fazer greve exatamente na manhã em que o novo diretor da escola de medicina marcara a primeira reunião com sua equipe, e daí em diante as coisas só complicaram.
Uma olhadela no espelho do banheiro, por exemplo, mostrara-lhe que estava usando óxido de zinco em vez de pasta de dente. Depois de lavar a boca dezena de vezes, para tirar o gosto horrível da pomada, ele passara no rosto a amostra de removedor de cutícula que sua irmã tinha ganhado em uma farmácia, em vez de usar o hidratante. Vendo pelo lado positivo, aquilo ajudara a disfarçar algumas rugas... Em todo o caso, ele tomou a sabia decisão de esquecer todos esses itens, exceto lógico, sua pomada capilar.
O conjunto Social, com a blusa social em linho branco que ajudaria a causar boa impressão ao novo diretor passara a noite no Closet, porque o interruptor da secadora de roupas havia quebrado, e ainda se encontrava úmido. Leonardo sabia que quando faz barba sua pele fica um pouco irritada com o uso de gilete, sabia que tinha um barbeador elétrico em algumas caixas a desempacotar, mas, depois de uma olhadela no relógio, optou pela Gillette mesmo. Resultado ficou com o rosto cheio de manchas avermelhadas.
Resolveu tirar uma mancha de sua calça e, como se era de esperar, a calça caiu dentro da pia do banheiro, cheia de água. Uma velha calça jeans larga foi tudo o que Leonardo conseguiu achar para combinar com sua única blusa pólo aproveitável. Em resumo, eram dez horas da manhã quando conseguiu chegar à reunião. Atrasadíssimo.
A fila andou quase três passos quando outros dois guichês foram abertos. Leo percebeu que seria o próximo a ser atendido.
Sem tempo para um café da manhã completo, decidira preparar uma sopa enlatada, de cozimento rápido. Mas conseguiu a proeza de colocá-la no prato do gato em vez de servi-la no seu.
Depois disso, porém, tudo pareceu voltar ao normal. O carro funcionara direito, não caíra em nenhum buraco novo nas estradas de Minas Gerais, ouvira o novo diretor anunciar que adiaria as inspeções para depois das férias. Eram boas notícias para o departamento de tecnologia médica, do qual ele fazia parte. Ingenuamente, Leo chegou a pensar que sua sorte havia mudado.
Não mudara. Fora apenas uma pausa, uma trégua, para que ele pudesse apreciar melhor o gran finale que o destino lhe preparara: o assistente do laboratório, que carregava a bandeja de amostras do setor de urologia, tropeçara. E todas elas foram parar na maleta aberta de Leo.
Durante o ritual da limpeza, da desinfecção e da desculpa, ele achara o boleto do imposto predial de sua nova casa, atrasado havia dois dias. Era por isso que agora se encontrava na fila da Secretaria da Fazenda da cidade de Juiz de Fora.
— O próximo!
Leo saltou ao ouvir a voz áspera e grave. Então se dirigiu ao guichê, com o imposto na mão.
No final da primeira quinzena de novembro, por lei, a Secretaria da Fazenda enviava os impostos prediais. Por esse motivo, os cidadãos de Juiz de Fora não podiam comprar seus presentes de Natal com antecedência, e não era exagero dizer que o coletor de impostos passava a ser o homem mais odiado do lugar.
Especialmente naquele ano, pensou Fernando Herodes, mal-humorado, porque em fevereiro haveria nova cobrança. Quando abrira o escritório, em janeiro, dissera, brincando, que não se importaria com as hostilidades que um coletor de impostos sempre despertava porque era advogado e estava acostumado a isso. Mas, naquele dia, ele próprio se hostilizava. Muito.
O sistema de computação entrara em pane, a funcionária que chefiava o escritório anunciara, pela manhã, que sexta-feira seria seu último dia de trabalho, e ele fora chamado de rei Herodes diversas vezes. O Natal chegaria em duas semanas, mas percebia-se uma ausência completa do habitual espírito fraterno na fisionomia das pessoas que estavam ali para pagar seus impostos.
Foi então que ele viu aquele belo homem aproximar-se. Olhou no mesmo instante para a mão esquerda dele e observou que não havia nenhuma aliança. Mais animado endireitou o corpo. Talvez o dia começasse a mudar para melhor.
Com um sorriso forçado, Leo entregou o boleto ao homem, rezando para que ele não notasse que o papel estava úmido, ou melhor, desinfetado. Pior ainda seria se perguntasse por quê. Sentiu o sorriso morrer quando o homem pegou o documento, examinou-o e franziu a testa.
— Boa tarde, Sr. Swearingen.
Era uma insanidade, Fernando disse a si mesmo, ficar tão desapontado ao ver o nome de uma mulher no imposto que aquele homem estava pagando.
O sorriso de Leo voltou.
— Os Swearingen eram os antigos proprietários — apressou-se em explicar. — Comprei a casa logo depois que o imposto foi enviado. Meu nome é Leonardo Ravagnolli.
Fernando digitou alguma coisa no teclado do computador, os olhos fixos no monitor, e entã
— Como vai, Sr. Ravagnolli?
O arquivo que a tela mostrava confirmou suas deduções. O rapaz não era casado. Carlos, seu grande amigo, sem dúvida caçoaria da formalidade do "senhor", mas Fernando não se incomodava. Não gostava do hábito moderno de chamar as pessoas pelo primeiro nome. "Senhor", "senhora" e "senhorita" ainda eram as palavras mais adequadas.
Ele estava prestes a apresentar-se quando Leonardo respondeu:
— Como vai, Sr. Herodes? — Havia um toque de timidez naquela voz.
Também era uma insanidade, Fernando concluiu, ficar tão satisfeito só porque ele o reconhecera. Era evidente que, depois de ter estado tantas vezes nos noticiários da televisão, nos últimos meses, metade do Estado de Minas o reconheceria.
Digitou alguns comandos para imprimir o novo boleto, dessa vez no nome do Sr. Ravagnolli. O computador, que tivera problemas o dia todo, agora funcionava com rapidez. Uma ironia, porque naquele momento Fernando rezava para que entrasse em pane. Queria ficar mais tempo na companhia daquele homem.
Mas a impressora soltou o documento pronto, e ele não teve escolha senão entregá-lo a Leonardo.
— Aqui está o total, mas você só precisa pagar metade. O resto não será cobrado até abril.
Fernando prendeu o fôlego quando ele pegou o boleto. Sempre que um imóvel mudava de dono, o imposto aumentava. Por isso, o dele era mais alto do que o dos antigos proprietários.
— Oh! Não é tão caro quanto imaginei que fosse.
Leo concentrou-se em tirar o talão de cheques da bolsa. Costumava reparar nos homens que encontrava, evidentemente; não estava morto. Só que habitualmente os encarava de um jeito... duro.
— É a primeira vez que ouço alguém dizer isso — falou Fernando, divertido.
Leo riu enquanto riscava o endereço e o telefone antigos do cheque e escrevia os novos. Fernando não perdeu tempo: deu uma olhadela no número e rapidamente copiou-o num pedaço de papel, que guardou no bolso.
Leo entregou-lhe a folha, referente ao pagamento da primeira parcela do imposto.
— Sabe, eu nunca esperaria vê-lo trabalhando num guichê. Devo confessar que estou impressionado.
— Digamos que tenho de ajudar meu pessoal a fazer a parte divertida do negócio — ele zombou e sorriu.
A verdade era que Leonardo não se impressionara somente com a presença dele ali. Na televisão, parecia uma pessoa simpática, mas ali... Era bem mais alto do que ela imaginara, tinha ombros largos e quadris estreitos. Os músculos fortes do braço desenhavam-se sob as mangas da camisa, e o pescoço, longo, era firme. O rosto não podia ser chamado de muito atraente, mas era bem rústico e masculino, com a barba para fazer, as linhas do queixo e da boca indicavam caráter, enquanto os olhos verdes revelavam bom humor. Os cabelos, castanhos escuros e já meio grisalhos, eram curtos.
— Por favor, aguarde apenas um instante para que o recibo seja impresso — disse Fernando.
Adorara os cabelos do Sr. Ravagnolli, de um tom castanho-claro com toques acinzentados, arrepiados com pomada, davam um ar jovial. A roupa, embora larga, permitia que se lhe adivinhassem as curvas generosas. Definitivamente, não se tratava de um homem que vivia às voltas com dietas. Alto, com olhos castanhos amendoados, tinha um rosto belo e tão liso quanto ao bumbum de um bebê.
Não era de uma beleza avassaladora, mas a expressão mostrava qualidades que Fernando admirava: inteligência, humor, honestidade.
Digitou as informações necessárias, apertou o comando "imprimir", e, pela primeira vez naquele dia, o computador fez exatamente aquilo que ele esperava: pifou.
— O sistema caiu, isso já ocorreu algumas vezes hoje — explicou, com um falso tom de desculpa. — Mas voltará a funcionar em dois minutos. — Bem, aproveitaria aquele tempinho para aumentar suas chances de sucesso quando lhe telefonasse, mais tarde. — Você mora perto de Muriaé?
O endereço mencionava Ribeiras, um vilarejo situado num grande canyon que corria entre duas cadeias de montanhas, próximo de Juiz de Fora. Mas o fato de a propriedade possuir seis acres, como indicava o imposto, significava que estava além da cidade.
— Não — Leo respondeu, balançando a cabeça e mudando de idéia quanto a não julgá-lo atraente. Agora achava. — Moro num vale, no meio do canyon.
Fernando pareceu surpreso.
— Aquele que atravessa Zuzax?
Foi a vez de Leonardo demonstrar surpresa.
— Esse mesmo. Pelo visto você deve ter crescido aqui — ele concluiu, uma vez que Zuzax era o nome de um posto turístico destruído muitos anos atrás.
Fernando assentiu com um movimento de cabeça.
— Nasci no hospital ali próximo. Meu pai trabalhava na Secretaria de Saúde Pública. — Fez uma pausa e sorriu. — Acho que você vai encontrar dificuldades em fazer a mudança durante os feriados.
— Já me mudei. Vendi minha antiga casa há três dias. Minha filha não poderá vir para cá no Natal, de modo que não tenho que me preocupar em desempacotar as coisas e colocá-las no lugar tão cedo.
Fernando observou uma sombra momentânea nos olhos dele. Uma reação que conhecia e compreendia muito bem.
— Meu filho não...
O computador voltou a funcionar. No mesmo momento, a chefe do escritório, Luciana Luft, apareceu.
— Fernando, estou com um problema e acho que só você pode me ajudar.
Ele seguiu o olhar de Luciana e viu, parada junto à porta, uma velha senhora.
— Marta? — disse Leonardo, perplexo.
— Conhece a Sra. Medeiros? — perguntou Luciana.
— Sim, há muito tempo. Agora, somos vizinhos.
Com oitenta e um anos, o rosto enrugado, Marta naquele momento apresentava um ar perplexo e preocupado.
— Ótimo. Assim poderá ajudá-la. Por favor, venha até aqui — pediu Luciana. Pegou o recibo que acabara de ser impresso e entregou-o a Leonardo, indicando-lhe uma porta à direita. Em seguida, olhou para Fernando. — Deixe que eu cuide do guichê. — E, enquanto ele também se dirigia para a porta à direita, sentou-se na cadeira e fitou a fila com ar de felicidade. — O próximo!
Fernando conduziu os dois até seu escritório e fechou a porta.
— Sou Fernando Herodes, o coletor de impostos, Sra. Medeiros — apresentou-se, segurando-lhe o cotovelo e levando-a até uma cadeira em frente à escrivaninha.
Virou-se em seguida, para acomodar Leonardo, mas viu que ele já havia se sentado. Ao se ajeitar atrás da mesa, reparou que a Sr. Ravagnolli tomara uma das mãos da Sra. Medeiros entre as suas.
Leonardo, preocupado, estudou a velha senhora. Conhecera-a vinte anos atrás, quando ainda estudava tecnologia médica e se sustentava trabalhando no hospital da universidade. Marta dava aulas na escola de enfermagem, e a última notícia que tivera dela fora que se aposentara e enviuvara. Saber que seriam vizinhos havia sido uma grata surpresa.
— Algum problema, Marta? — perguntou com gentileza.
Marta balançou a cabeça afirmativamente e suspirou.
— Oh, querido, meti-me numa confusão e agora estou prestes a perder minha casa.
Instintivamente, Leonardo olhou para Fernando Herodes. Percebeu que ele estava sinceramente preocupado.
— O que houve Sr. Medeiros?
— Quando meu marido morreu, descobri que ele investira todo o dinheiro que havíamos economizado no negócio de um amigo. Eu o amava, mas tenho de reconhecer que ele não entendia nada sobre o assunto. Um mês depois, o tal negócio foi à bancarrota. Foi então que encontrei os documentos que ele assinara como avalista. Hipotequei minha casa, retirei minha pensão e paguei as dívidas.
— Seu advogado aprovou essa atitude? — perguntou Fernando.
— Não. Mas, como trabalhei a vida inteira, achei que me recuperaria. E isso aconteceu, até... Eu fraturar os quadris.
— Quando? — quis saber Leonardo, mais preocupado ainda.
— Há quatro anos, querido. Agora estou bem. — Fitou Fernando. — Com a ajuda da previdência social e da pensão de meu marido, venho conseguindo pagar a hipoteca. Mas fiquei devendo os impostos. Não pude voltar a trabalhar tão cedo, como queria, e não os paguei também no ano seguinte. Em resumo, só agora comecei a ganhar a vida novamente, e planejava pôr as contas em dia ao longo do próximo ano. Mas ontem recebi sua carta.
Marta abriu a bolsa e pegou a carta. Antes que pudesse entregá-la a Fernando, Leonardo a segurou. E leu.
— Você mandou isto aqui? — perguntou num tom furioso, mas controlado.
Sem dizer nada, ele pegou o papel e começou a ler, sentindo-se cada vez pior. Enviara um modelo que recebera da Secretaria das Finanças, sem examiná-lo. Por isso, não imaginava que o efeito fosse tão devastador.
— "Pagamento imediato... despejo em trinta dias... sem prejuízo das responsabilidades civis..." — Em outras palavras, pague ou perca tudo. A carta o fez sentir-se o vilão de um melodrama ultrapassado. — Sim, enviei isto — respondeu, sem graça.
Antes de acrescentar que não devia ter feito aquilo, viu Leonardo levantar-se.
— Já tivemos muita gente vil neste escritório, mas ninguém como você!
Fernando ergueu-se, num gesto pacificador.
— Sr. Ravagnolli, a Sra. Medeiros não devia ter recebido esta carta. Por favor, deixe-me explicar...
Leonardo nem sequer lhe prestou atenção.
— Vamos embora, Marta. — Ajudou a velha senhora a se levantar. — Não há por que perder tempo com esse sujeito.
— Ele só estava cumprindo seu dever, querido. Acho que...
— Dever? E desde quando alguém tem o "dever" de ameaçar tirar a casa de uma viúva? E justamente na época do Natal?
Atônita, Marta lançou a Fernando um olhar compreensivo, antes de ser guiada por Leonardo, que saiu dali como um furacão, batendo a porta com força.
Sentindo-se um monstro, ele voltou a sentar-se. Nesse momento, a porta se abriu de novo, e o rosto de Leonardo apareceu.
— Esqueci de dizer que o senhor merece o sobrenome que tem, Sr. Herodes.
E bateu a porta mais uma vez.
E bateu a porta mais uma vez.
Magnifico ... amei o começo da historia. ♥
ResponderExcluirGostei. Boa história.
ResponderExcluirParabéns!
saulo2377@hotmail.com
Meu Amigo parabéns pela Obra. O mais engraçado é que a maioria dos que já leram ou ao menos entraram no seu Blog, não tiveram nem a preocupação de deixar nem que fosse um comentário que fosse. MAS O IMPORTANTE MESMO É QUE VOCÊ É SUPER TALENTOSO. Um forte abraço
ResponderExcluirCARA PARABENS PELO BLOG NAO TIVE TEMPO SUFICIENTE PRA LER ESSE LINDO LIVRO QUE VC ESCREVEU, MAIS PELO VISTO VC TEM TALENTO DE SOBRA E NAO DEIXE QUE ROUBEM ISSO DE VC , POIS VC É UMA ESTRELA E NASCEU PRA BRILHAR..... BJS ASS KAKA
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