Quero torta de maçã e café — disse Leonardo, fechando o cardápio.
O garçom escreveu o pedido no bloco de notas.
— Gostaria de creme no café?
— Sim, por favor.
O rapaz fez a anotação, recolheu os cardápios e saiu.
Leonardo olhou para Daiane Mendes.
— Como vai sua dieta?
— Bem, na última semana perdi os quilos que faltavam.
Mas nesta ganhei-os de novo. Na verdade, a vida é muito breve para a gente comer só saladas.
Leonardo riu, acompanhada pelas amigas. Ex-colegas de faculdade, reuniam-se toda segunda quinta-feira do mês para conversar... e comer tortas.
— Vocês se lembram de Marta Medeiros?
— Claro que sim. Por quê? — indagou Paula Oliveira.
— Ela corre o risco de perder a casa por causa de impostos atrasados.
E então Leonardo contou toda a história. Quando terminou, Biatriz Lopez exclamou, perplexa:
— Que coisa horrível! Como foi que aquele monstro do coletor pôde mandar uma carta assim?
— Acho que quis pôr ordem na casa, cobrando os impostos que o antecessor deixou de arrecadar. Mas não foi ele quem escreveu a carta. Pelo jeito, nem mesmo a leu antes de enviá-la.
Nem sequer sabia o que continha.
— Bem, mas devia saber.
— Com certeza — concordou Leonardo.
Depois de mais algumas considerações sobre Fernando Herodes, as quatro amigas começaram a falar sobre os planos para o Natal. Os quatro filhos de Paula e os dois de Daiane passariam a data em casa. Os de Biatriz moravam com ela. Leonardo seria o único a comemorar sozinho.
— Como foi seu encontro com o dr. Sweet, querido? — Paula lhe perguntou.
— Não houve encontro nenhum. Eu me recusei a sair com ele.
— Por quê? — quis saber Daiane, surpresa. Ela, Paula e Biatriz ainda estavam casadas com os primeiros maridos e, como a maioria das esposas felizes, julgava que o amigo também devia sê-lo.
— Porque ele é um homem de trinta e dois anos que pensa como um garoto de doze. E eu já tenho uma filha para criar. Não pretendo educar outro.
Paula a fitou, espantada.
— Você não contou a ele sua idade, contou?
— Costumo dizer, a quem pergunta, que estou mais perto dos quarenta do que dos trinta anos — falou Biatriz. — Ainda não consigo admitir que já caminho para os cinqüenta.
— Eu não me importo em revelar isso — afirmou Leonardo, sorrindo.
— E quanto ao dr. Cooter? — indagou Daiane. — É um homem mais velho, mais maduro.
Biatriz fez uma careta.
— Velho demais. Não creio que seja adequado a Leonardo.
— Já sei! — exclamou Paula, triunfante. — O dr. Richwine seria ideal para você, querido.
A sugestão foi rejeitada pelas outras.
— Mas que idéia! — protestou Biatriz. — Ele já passou dos setenta.
— De mais a mais — acrescentou Leonardo —, já decidi que nunca mais sairei com homens cujo manequim seja menor do que o meu.
— E quanto a Carlos Andrade? — questionou Paula. — Ele provavelmente estará na festa do departamento esta noite, e tenho certeza de que o convidará para sair se você lhe der um pouco de atenção.
— Andrade fará isso mesmo que Leonardo não olhe para ele, pode apostar — murmurou Biatriz.
— Não se esqueçam de que ele é o clínico geral — insistiu Paula.
— Vocês acham que devo ir para a cama logo no primeiro encontro? — perguntou Leonardo, com um sorriso irônico. Na verdade, se saísse com Andrade seria praticamente obrigado a isso. Descasado pela terceira vez, procurava encontrar a quarta vítima, isto é, marido. — Falando na festa de Natal — disse, consultando o relógio —, é melhor nos apressarmos. Começa em menos de uma hora.
— Tenho certeza de que acharemos o homem certo para você, querido, um homem gay e descente. — falou Daiane, recusando-se a dar o assunto por encerrado. — Vamos ver... Que qualidades ele deve ter?
— Precisa ser honesto, sincero e confiável, claro.
— E ter senso de humor.
— Deve ter bom coração e trabalhar duro.
— Trabalhar muito “duro”, diga-se de passagem. — Reafirmou Daiane.
— Ter uma vida financeira estabilizada.
— Filhos já crescidos ou não ter filhos de preferência— disse Biatriz.
— E uma bela aparência — acrescentou Paula.
— De acordo — falou Daiane.
— Não pode ser totalmente careca — afirmou Biatriz.
— E deve ter muita vitalidade — disse Daiane, com uma expressão maliciosa.
—Além disso, precisa concordar em assinar um termo pré-nupcial — acrescentou Paula. — Leonardo tem de proteger o que é seu.
— Não sei se vou querer assinar algum documento — interveio Leonardo. — Reconheço que é necessário, como garantia, mas por outro lado parece falta de confiança no parceiro. E, francamente, estou muito pouco interessado na parte financeira do casamento. Prefiro um homem que concorde em pintar a casa, cuidar do jardim e fazer todos os consertos domésticos. — Esperou as amigas pararem de rir para acrescentar, divertido: — Bem, quando vocês encontrarem esse homem maravilhoso, avisem-me. Ao menos uma vez na vida, eu gostaria de ter um romance selvagem, tão quente que fizesse a cama derreter.
Embora a frase tivesse sido dita em tom de brincadeira, Leonardo percebeu que era isso mesmo o que queria. Então concluiu que não precisava de um clínico geral. Precisava de um psiquiatra.
Fernando fechou a porta de seu armário, na academia de ginástica.
— Aonde você e o Felipe vão esquiar neste Natal?
Carlos Andrade travou o cadeado.
— Não vamos.
Fernando fitou o melhor amigo com ar de surpresa.
— O que aconteceu? Pensei que o relacionamento de vocês dois fosse sério.
O médico deu de ombros enquanto guardava a luva de handebol na sacola.
— Não sei. Ultimamente não venho dando sorte com os homens. Parece que basta tocá-los para que eles fujam de mim.
— É mesmo? — indagou Fernando, bem-humorado.
Carlos deu-lhe um sorriso desgostoso.
— Exatamente. — Fechou o zíper da sacola e começou a caminhar para a porta do vestiário. — Não sei, companheiro. Os homens dizem querer um homem de boa aparência, excitante e inteligente, quando na verdade o que desejam é alguém que os ame, respeite e proteja.
— Na maioria das vezes, eles querem tudo isso numa mesma pessoa.
— Tem razão. Mas quer saber de uma coisa? Mais cedo ou mais tarde, os gays vão preferir os machistas tolos e egoístas.
— Não aposte nisso, parceiro.
Carlos riu.
— E quanto a você? Planejou alguma coisa para o Natal?
— Vou para a casa de minha irmã, em Gallup.
— Não estava saindo com Márcio Madera?
— Saímos algumas vezes. — Fernando deu de ombros enquanto abria a porta da caminhonete. — Porém não aconteceu nada de especial.
O amigo o fitou, desconfiado.
— Por quê? Ele é um homem culto, agradável, maduro...
Parecia perfeito!
— E era. Perfeito demais. Metódico demais. Eu não me sentia à vontade. Ele é do tipo que nunca suja as mãos, sabe?
Não gosta de acampar, cuidar do jardim, lavar o carro... Coisas simples, mas importantes numa vida a dois.
— Ei, você não acha que está exigindo muito?
— Não, não acho. Quero um companheiro, não uma boneca enfeitada. — Pensou por um instante. — Quero um homem para quem a cozinha não se reduza ao microondas.
— Que machista, hein? — Rindo, Carlos consultou o relógio.
— Daqui a pouco começa a festa do departamento. — Olhou para Fernando. — Ei, você pretende fazer alguma coisa esta noite?
— Por quê?
— Preciso de um pequeno favor. Por meia hora, no máximo. — Não era verdade, mas Carlos não se incomodou em mentir por uma boa causa.
— Não posso acreditar que o deixei fazer isso comigo! — protestou Fernando.
— Pare de reclamar. Você parece um disco quebrado — Carlos respondeu, passando cola no rosto do amigo. — E me ajude a segurar isto, droga! — Pressionou a sobrancelha postiça e branca, para que ficasse bem presa.
— O que você está tentando fazer, estragar meu rosto? — Lançou ao outro um olhar de suspeita. — Isso depois sai, não é? Não vou ficar com essa barba grudada durante uns seis meses, vou?
— Francamente Herodes, nunca pensei que você pudesse ser tão chato. — Carlos balançou a cabeça, com ar desaprovador, enquanto colava a outra sobrancelha. Então pegou o gorro vermelho, com um pompom branco na ponta. — Segure! — ordenou enquanto tentava prendê-lo.
Fernando se contorceu, procurando aliviar uma súbita coceira.
— Não posso. Essa maldita roupa cheira a mofo e está cheia de pulgas!
— Não está cheia de pulgas coisa nenhuma, e cheira a naftalina. Agora, segure. — Levantando a enorme barba branca, prendeu o elástico do gorro sob o queixo do amigo, ajeitou-o e finalmente se afastou, avaliando o resultado. — Aí está. E o melhor que posso fazer com o modelo que tenho em mãos.
— Ora! Mais respeito comigo seu corno!
Fernando levantou-se da cadeira e foi até o espelho pendurado sobre a pia. Mexeu no gorro, experimentando colocá-lo mais à direita e depois à esquerda.
— Pare com isso, ou vai estragar o penteado.
— Foda-se.
— Que coisa mais feia, Fernando. Papai Noel nunca usaria uma expressão como essa. — Riu.
— Por que você não faz o papel do bom velhinho? — Fernando perguntou, acusador, enquanto se dirigia à porta.
— Já lhe disse: porque sempre fico cuidando dos cachorros-quentes. E preparar cachorros-quentes é uma arte. Exige uma habilidade que você não tem — respondeu, dando um tapinha na almofada que fazia as vezes de barriga em Fernando.
O olhar de Leonardo percorreu a sala decorada até alcançar a fila de crianças que esperavam para sentar-se no colo de Papai Noel. A despeito da torta e do creme, decidiu ir até o carrinho, pegar dois cachorros-quentes. Carlos Andrade tinha um jeito especial de prepará-los. Depois, encontrou uma mesa vazia e se sentou. Segundos mais tarde, Suzana Komadine juntou-se a ela.
— Olá, Suzana.
— Olá, Leonardo.
A última criança pulava do colo de Papai Noel quando ambas terminaram o lanche. Tradicionalmente, era o momento de os adultos fazerem seus pedidos ao bom velhinho. Leonardo esperou que alguém fosse até ele, mas ninguém tomou a iniciativa.
— Bem, acho que este ano serei a primeira a falar com Papai Noel — disse à amiga, que falou algo incompreensível enquanto mastigava. — Voltarei num instante.
Fernando decidira esperar mais um pouco, caso alguma criança ainda quisesse fazer pedidos ao Papai Noel. Jamais admitiria a Carlos, claro, mas havia gostado muito da brincadeira.
— A bênção.
Ele se virou para o lugar de onde vinha a voz masculina no momento em que Leonardo Ravagnolli sentou-se em seus joelhos. Carlos já lhe contara que ele fazia parte da equipe que dirigia o departamento de tecnologia médica. Também dissera que os homens, ali, sentavam-se todos os anos no colo de Papai Noel, para fazer seus pedidos. Fernando rira, julgando isso uma piada.
Agora percebia que não era.
Decidiu ficar em silêncio. Não queria arriscar-se a ter uma nova discussão com Leonardo. Jamais poderia imaginar que ele pensava estar junto ao marido de Paula, que tradicionalmente vestia a roupa do bom velhinho.
— Paula me disse que o senhor estava com laringite, dr. Dan. Pensei que isso o impediria de participar da festa. Ainda bem que me enganei. — Colocou um braço em volta dos ombros de Fernando. — As crianças deram muito trabalho este ano?
Ele fez um gesto negativo com a cabeça e murmurou algo em voz baixa. Leonardo só conseguiu captar duas palavras.
— Oh, não diga nada, por favor. Poupe sua garganta. Deixe a conversa por minha conta. — Sorriu. — Sabe, comprei uma casa nova. Victoria, minha filha, não vai passar o Natal comigo. Só poderá vir para cá no mês que vem. Quem sabe até lá eu consiga desempacotar as coisas e colocá-las em ordem!
Fernando a princípio espantou-se, mas depois achou melhor que ele não o tivesse reconhecido. Tinha a impressão de que, se lhe contasse quem era, Leonardo sairia dali como um gato selvagem, e as crianças não entenderiam por que alguém ficaria com tanta raiva de Papai Noel.
— Deixe-me lembrar... O que o senhor sempre me pergunta? Ah, seja encontrei o homem certo. Não, ainda não. — Suspirou.
— Sabe, eles são gentis e românticos, mas não me atraem muito. Eu gostaria de conhecer alguém que gostasse de dividir comigo os serviços de casa, que apreciasse caminhar nas montanhas, sentar em frente à lareira... Alguém com quem dividir os sonhos. E a vida. Entende?
Leonardo fitou-o mais de perto e sentiu-se culpada. Pobre Dr. Dan... Estava tão cansado que mantinha a cabeça abaixada. Não conseguia nem mesmo ver-lhe os olhos.
— Bem, tenho de ir. O senhor deve voltar para casa. Deixe que Mamãe Noel lhe prepare um chocolate quente e o coloque na cama. — Inclinou-se e beijou-lhe o rosto. — Feliz Natal, Papai... — Por um breve segundo esteve perto dele o suficiente para perceber que aqueles olhos não eram os do Dr. Dan. Reconheceu-os de imediato. — Você! — exclamou furioso, começando a se levantar.
Foi então que um braço forte a segurou pela cintura.
— Trate de se comportar. Como espera que eu explique a esse monte de crianças que você resolveu fugir de Papai Noel e está gritando com ele?
— Não gritei — ele respondeu, com fria dignidade. — Só não entendo o que veio fazer aqui.
— Acontece que o Dr. Dan Oliveira ainda está doente, e Carlos me pediu para substituí-lo. Eu não sabia que você estaria aqui e que resolveria conversar com Papai Noel. É tudo.
— Carlos Andrade? Eu devia saber que vocês dois se conheciam. — Leo sussurrou sarcástico. — Por que não se apresentou quando me aproximei?
— Você me pediu para não dizer nada, lembra? De todo modo, tive medo de que, ao saber da verdade, você fosse ficar irritado e estragasse a festa. Por isso, decidi manter a boca fechada. Esperava, com um pouco de sorte, não ser reconhecido.
— Parece que sua sorte o abandonou. Agora tire essas mãos de mim, seu... Monstro!
Fernando obedeceu de imediato. Leonardo se levantou e se afastou como um raio.
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