Leonardo observou que o sabonete branco, com que lavava as mãos, tornara-se preto. Limpar chaminés era menos complicado do que imaginara, mas em compensação fazia uma sujeira inacreditável.
Quando fechou a torneira do banheiro, percebeu que alguém tocava com insistência a campainha. Enxugando as mãos numa toalha, correu para a entrada da casa. Ao abrir a porta, viu que Marta já desistia de esperar.
— Olá, Marta! Deixe-me adivinhar: você veio até aqui porque me viu no telhado com essas roupas maravilhosas e quer saber onde as comprei certo?
A velha senhora olhou para os cabelos desgrenhados, o jeans e a camiseta pretos de fuligem, e caiu na gargalhada.
— Certo.
Por cima do ombro dela, Leonardo viu uma enorme picape prateada.
— De quem é aquela caminhonete? — perguntou.
— Minha — respondeu Fernando Herodes, aparecendo no jardim.
— Como você não aparecia, decidi tentar a porta dos fundos.
Ele vestia o traje típico dos sábados: jeans velho, camisa de flanela azul-clara, tênis e boné.
— Leonardo, Fernando veio dizer o que devo fazer em relação a meu problema com os impostos — explicou Marta. — Achei que você gostaria de ouvir.
Ah, então ela já o tratava por "Fernando"!
— Claro que gostaria — respondeu Leonardo, fitando-o do modo mais sério que conseguiu.
Um minuto mais tarde, os três atravessavam o terreno que separava as duas residências. Leonardo notou que ele amparava Marta, segurando-a pelo cotovelo, e que tirou o boné assim que entrou na casa da velha senhora. Aprovou silenciosamente a gentileza, que a maioria dos homens não fazia mais.
Marta os deixou na sala e foi para a cozinha, preparar café.
Tentando evitar contatos e conversas, Leonardo concentrou a atenção no aposento, que estava um tanto mudado. Havia menos móveis ali. A mesa e as quatro cadeiras, impecavelmente limpas, pareciam ainda menores sem a mobília adequada para acompanhá-las.
— Se não me engano, devia haver um bufê aqui — disse Fernando, olhando para um espaço vazio numa das paredes da sala de jantar.
— Ou um armário — acrescentou Leonardo. — Parece que estão faltando várias peças nesta casa.
— Com certeza.
Os dois contaram outros doze espaços onde, indicava a pintura menos desgastada pelo tempo, deviam ter havido alguns móveis. Aquela ausência, de alguma forma, tornava ainda mais triste à decoração natalina que Marta fizera.
Leonardo atravessou a sala e foi até o corredor que levava aos quartos.
— O hall e o primeiro quarto também perderam parte do mobiliário — disse em voz baixa ao voltar para junto de Fernando.
Marta entrou naquele instante, carregando uma bandeja, e sentou-se ao lado de Leonardo, no sofá.
— O que aconteceu com seus móveis? — perguntou Fernando.
— Eu os vendi depois que fraturei os quadris. A maioria era antiga, e consegui um bom preço por eles.
Leonardo viu que os lábios de Fernando apertavam-se numa linha estreita e ficou surpreso. Imaginara-o um homem bonito, mas sem coração, e agora percebia que se enganara.
A velha senhora os serviu e colocou a bandeja numa mesinha barata, entre os dois sofás.
— Muito bem, pode me dar às más notícias, Fernando.
A mulher trêmula e assustada que visitara o escritório dias antes dera lugar a Marta de sempre, forte, cheia de vitalidade, preparada para enfrentar as dificuldades da vida.
— Dadas as circunstâncias, o governo não moverá nenhuma ação contra você nem lhe tirará a casa. Haverá um prazo maior para o pagamento dos impostos, sem os juros...
— O governo coisa nenhuma! É você quem está tomando essas providências — interrompeu-o Marta. — Foi por fazer coisas assim que seu antecessor ficou em apuros, meu jovem.
De mais a mais, não vou permitir que aja dessa maneira. Não aceito caridade. Vou pagar minha dívida com juros e tudo.
— Não se trata de carida...
Marta levantou a mão, fazendo com que Leonardo parasse de falar.
— Não adianta Leo meu querido. Sei que tenho um orgulho bobo, mas estou velha demais para mudar. — Virou-se para Fernando.
— Vou aceitar só uma parte de sua oferta. Se suspender o arresto da casa, poderei vendê-la e saldar a dívida.
Leonardo e Fernando trocaram um olhar frustrado.
— Isso resolveria o problema — disse ele. — Seria possível levantar o dinheiro necessário.
pontapé nas canelas.
— No entanto... — começou a falar, mas ele o interrompeu.
— Se vender a casa, porém — continuou Fernando —, terá outro problema. Onde vai morar?
—Acharei um apartamento na cidade. Eu devia ter me mudado daqui a muito tempo. — Apontou para a casa onde morava havia quarenta anos como se não se importasse em perdê-la.
Mas estava fingindo. Leonardo notou que as mãos de Marta tremiam.
— Compreendo — disse Fernando, num tom solidário. — A casa ficou muito grande para você, certo? Grande demais para limpar, com um jardim exagerado para cuidar...
— Sim. Quer dizer, não! — Marta lançou-lhes um olhar de frustração. — Acontece que não tenho outra saída.
Leonardo sentiu lágrimas nos olhos. Era melhor que Fernando encontrasse logo uma solução para aquilo.
— Você pode fazer uma hipoteca reversa. Já ouviu falar nisso?
Marta assentiu, movimentando a cabeça.
— Leonardo me deu um folheto sobre o assunto ontem à noite.
Alguém, geralmente por caridade, compra sua casa, mas permite que você more nela se pagar uma certa quantia por mês. Acontece que já tenho uma hipoteca, e não acho que possa pagar uma segunda dívida.
— Conversei com duas pessoas que fazem empréstimos para casos assim. Você não precisará pagar as mensalidades agora, visto que ainda tem a velha hipoteca. Mas haverá dinheiro suficiente para isso e para os impostos. —"Sem os juros", pensou Fernando.
Marta e Leonardo trocaram olhares desconfiados. Seria tão fácil assim? De repente, o rosto da velha senhora iluminou-se com um sorriso. Em seguida, ela enlaçou Leonardo num forte abraço.
— Oh, querido, não vou perder a casa!
— Não, não vai — Leonardo respondeu discretamente.
Marta parecia ter rejuvenescido vinte anos. Aproximou-se de Fernando e também o abraçou.
— Obrigada, filho. — Deu-lhe um beijo no rosto. — É o melhor presente de Natal que já recebi.
— Ora, não precisa agradecer.
Os olhos de Fernando encontraram os de Leonardo. Hesitante, ele lhe retribuiu o sorriso. Uma hora atrás, sabia exatamente o que pensar daquele homem, mas agora... Bem, agora não sabia mais nada.
— Não sei nem expressar o que isso significa para mim — prosseguiu Marta. — Sinceramente, eu gostaria de lhe agradecer de alguma maneira.
Gentilmente, ele lhe tomou as mãos.
— Vou lhe dizer como. Antes de pedir financiamentos, empréstimos ou coisas assim, fale comigo. Promete?
— Prometo — foi a resposta solene. — Bem, estou morrendo de fome. Alguém quer almoçar?
Fernando aceitou no mesmo instante.
— Agradeço, mas preciso terminar a limpeza da casa — disse Leonardo, analisando criticamente a própria aparência. Havia se esquecido de que estava com roupas apropriadas apenas para fazer faxina.
Quando levantou a cabeça, deparou com os profundos, instigantes olhos verdes de Fernando Herodes.
— Tem certeza? — insistiu Marta, a meio caminho da cozinha.
— Tenho — ele respondeu, desviando o olhar e dirigindo-se à porta.
Então o ouviu dizer à velha senhora:
— Vou dar uma olhada em seu carro e verificar por que está demorando a pegar.
Leonardo deu mais dois passos e percebeu que ele vinha logo atrás.
— O que é isso? — Fernando perguntou.
Leonardo, a princípio, fingiu não escutar. Depois, percebendo que essa era uma atitude infantil, virou-se e viu que ele apontava para alguns velhos documentos, emoldurados e colocados sobre uma mesinha.
— Oh, são certificados que Marta herdou de um tio advogado. O município emitiu esses papéis quando o Minas Gerais ainda era um território, e portanto eles não têm nenhum valor, mas... — passou um dedo numa das molduras que protegia os documentos — ...como são muito bonitos, Marta decidiu usá-los na decoração da casa.
Leonardo procurava pela toalha de papel quando a campainha soou. Na certa era Marta, que vinha dar mais detalhes sobre os planos para salvar a casa. Abriu a porta e ficou surpresa ao ver Fernando Herodes, segurando um vidro de azeitonas pretas enormes e saborosas.
— O armazém estava cheio delas.
Leonardo olhou para o vidro e para a mão enorme que o segurava. Para ser honesto, tinha de reconhecer que o comportamento daquele homem, nos últimos dias, vinha sendo exemplar. Sorriu e aceitou o presente.
— Obrigado. Devem ter custado muito caro.
— Ainda bem que gostou.
Fernando não fez um único movimento para sair dali. Sem jeito, ele rolou o vidro entre as mãos.
— Eu... ia fazer um chá. Quer me acompanhar?
Fernando odiava chá, mas aquele não era o momento para confessar isso.
— Quero, obrigado.
Ao entrar no terraço, a primeira coisa que viu foi um enorme vaso de flores sobre um velho lavatório. Acima do móvel, numa larga e comprida fita vermelha, estava pendurado um número impressionante de cartões de Natal.
O terraço ladrilhado levava à sala de estar. Do lado direito, havia um longo corredor, por onde se chegava aos quartos. Do esquerdo, um pequeno hall antecedia a cozinha.
— Você não precisava se incomodar em trazer as azeitonas.
O que fez por Marta foi suficiente.
— Aquilo foi por Marta. O presente de hoje é para nós.
Para nós. Não havia nós na história, mau um arrepio a percorreu à simples idéia de que poderiam vir a ter algum envolvimento.
— Tem certeza de que quer apenas chá? Posso preparar outra coisa.
— Não há necessidade. Eu me contento com chá.
Ele se recostou no balcão, longe de Leonardo. Sentia-se ótimo.
A cozinha, clara e ampla, fora decorada para o Natal.
Ele encheu uma panelinha com água e a levou ao fogo.
— Minha chaleira deve estar numa das caixas que ainda não consegui abrir. Se eu tiver sorte, irei encontrá-la até o Natal — explicou, com um sorriso.
Notou que Fernando usava um cinto repleto de ferramentas e imaginou que ele andara mexendo novamente no carro de Marta.
— Por que não esquenta a água no microondas? É muito mais rápido.
— Tem razão. Acho que não o uso com a freqüência devida.
Transferiu a água para um pote de plástico resistente, levou-o ao forno de microondas e virou-se. O sorriso que viu nos lábios de Fernando o fez esquecer, por um momento, o que ia dizer.
Balançou a cabeça, procurando se concentrar.
— Não foi você quem escreveu aquela carta a Marta, foi?
— Não. Mas estava assinada por mim. Eu devia saber o que continha. Precisava ter lido antes de enviá-la.
— Imagino que outras pessoas tenham recebido cópias da carta...
Ele riu, constrangido.
— Quase trezentas.
O forno emitiu um som agudo, avisando que a água já estava quente. Leonardo retirou o pote, colocou dois saquinhos de chá em duas xícaras, encheu-as com o líquido e entregou uma a ele.
— Se eu não o tivesse descoberto naquela roupa de Papai-Noel, você iria me contar a verdade?
— Assim que encontrasse um jeito de ajudar Marta. Eu imaginava que seria melhor ter alguns pontos a meu favor antes de esclarecer o engano.
— Não passou por sua cabeça que eu pudesse ficar sabendo da verdade por outra pessoa?
— Cheguei a pensar nisso. Mas ninguém sabia que eu havia desempenhado o papel de Papai Noel. Assim, considerei que, quando lhe contasse, depois de ajudar Marta, você não fosse ficar muito furioso.
Ele sorriu, divertido, e pegou duas colherinhas de prata de uma das gavetas do armário. Em seguida, procurou pelo açucareiro.
— Se quiser misturar com um pouco de leite... — falou.
— Não, obrigado. Basta o açúcar.
Ao mexer o chá, ele deu um suspiro aliviado. Com os casos da carta e de Papai Noel superados, podia pôr em prática seus planos. Viu-o colocar a caixinha de chá sobre a pia, num movimento que revelou as curvas do peitoral e dos quadris. Sentiu um súbito calor. "Vá devagar, meu caro", lembrou a si mesmo.
"Não tenha pressa."
Leonardo terminou o chá e colocou sua xícara sobre a pia.
— Quer mais?
— Não, obrigado — ele respondeu, repetindo o gesto que Leonardo acabara de fazer. Nesse momento, reparou num prato de comida sobre o mármore. — Ei, você costuma comer em cima da pia?
— Na maioria das vezes. Só ponho a mesa em ocasiões especiais. E você?
— Parece que temos hábitos parecidos.
— É mesmo?
Leonardo sorriu. Pessoas que comiam na pia geralmente viviam sozinhas. Devia ser esse o caso de Fernando. Ele não usava aliança, mas isso não queria dizer nada. Não que o estado civil daquele homem lhe importasse, claro.
— A diferença é que minhas refeições são feitas sob a luz suave da geladeira aberta. Não acha sofisticado? — zombou.
Ah, então ele morava só! Ou será que a esposa viajava muito?
— Quer conhecer o resto da casa? — perguntou, ao perceber que ele não iria embora tão cedo.
Procurando disfarçar a alegria, Fernando respirou fundo, tentando não gaguejar ao responder:
— Sim, claro.
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