sábado, 10 de dezembro de 2011
Um Presente de Natal - 5º Capitulo
Leonardo sentou-se no último banco da igreja e olhou em volta. Então desejou não ter feito isso. O caso já estava ficando ridículo. Nos cinco dias que se seguiram à visita de Fernando Herodes, ele o vira numerosas vezes: na mercearia, na rua e em mais uma dúzia de lugares. No entanto, quando olhava mais detidamente, notava que nunca se tratava dele. Eram homens que tinham alguma semelhança, como altura, rosto, cabelos.
Naquele momento, julgava tê-lo visto de novo. Ou melhor, alguém que se parecia com ele.
Culpa de Fernando, concluiu enquanto se levantava para dar passagem a uma família. Sentou-se de novo. Embora não o tivesse encontrado depois daquele dia, percebera que ele a visitara em algumas ocasiões, sem encontrá-lo em casa. Ao que tudo indicava, o advogado voltara com uma peça para o carro de Marta, depois com uma fechadura nova para a porta e, mais tarde, consertara algumas janelas.
Numa dessas visitas Leonardo saíra para comprar uma árvore de Natal, grande demais para passar pela entrada da casa. Acabara por deixá-la no terraço e mais tarde soube por Marta que Fernando se oferecera para colocá-la na sala. Para evitar que a cortesia se concretizasse, cortou alguns galhos e terminou por levar a árvore para dentro. Não desejava depender daquele homem.
Na segunda visita, ele consertara o portão que dava para o pátio e a torneira do jardim. Não vira esses problemas no dia em que Leonardo lhe mostrara a casa; certamente fizera outro exame depois. Saber que Fernando Herodes estivera ali era surpreendente e, de alguma maneira, perturbador. Talvez fosse por isso que ele imaginava ver aquele homem em todo canto.
Afinal, não conseguia tirá-lo da cabeça.
A orquestra tomou seu lugar no altar e começou a tocar.
Leonardo desabotoou o casaco, notando que a decoração do templo consistia simplesmente de guirlandas de pinho, que perfumavam o ambiente. A parte religiosa das festividades que antecediam o Natal era a de que Victoria mais gostava. Uma pena ela não estar ali, para compartilhar com o pai o espetáculo.
Leonardo sentia-se infinitamente só.
As luzes diminuíram de intensidade, para avisar que o coral adentrava o altar. Muitas pessoas passaram por ele, para ver o grupo mais de perto, e uma parou a seu lado. Quando Leonardo se virou para ver de quem se tratava, deparou com Fernando.
— Olá, Leonardo. Há mais um lugar no banco?
Ele levou um segundo para entender que precisava se levantar para lhe dar passagem.
— Oh, sim. Claro. Por favor, sente-se.
Nesse momento, o maestro ergueu a batuta, o que impediu qualquer tipo de conversa. Leonardo deu-se conta de que, como o banco estava cheio, seus braços, ombros e quadril pressionavam-se contra os dele. Era confortador. E excitante.
A primeira peça da noite foi o Magnificat, de Bach. A atenção de Fernando parecia toda voltada à música. Quanto a ele, perturbado com a proximidade masculina, mal conseguia concentrar-se nos belíssimos acordes.
Quando a orquestra parou, Fernando se levantou de imediato, para aplaudir. Mais tarde, quando as pessoas se dispersaram, aproveitando a pausa para rever amigos e parentes, ambos ficaram em pé.
— Quer tirar o casaco? — ele perguntou, educado.
— Não, obrigado. — Agora, que não estava mais sentado ao lado de Fernando, ele sentia frio. — Você costuma vir à igreja no Natal?
Fernando sorriu.
— Nunca. E não viria esta noite, mas um funcionário da coletoria tinha um ingresso extra e eu, nada a fazer. Assim, resolvi aparecer. E não me arrependo. A música é maravilhosa.
Na verdade, e isso ele não iria confessar, seu maior prazer fora o inesperado encontro com Leonardo. Vinha planejando convidá-lo para sair, mas não tivera coragem.
A segunda parte do programa apresentava peças apenas para coro, sem a participação da orquestra. Leonardo permanecia sentado, sem sequer se mexer. Apenas ouvia... e sentia. Quando a música terminou, Fernando viu lágrimas brilharem nos olhos de Leonardo. Seu primeiro desejo foi abraçá-lo, mas resolveu se contiver. Afinal, dessa maneira estaria satisfazendo a sua vontade, não a dele.
Não havia tristeza ou dor na expressão suave de Leonardo, que parecia perdido em lembranças agradáveis. Fernando contentou-se em tocar-lhe a manga do casaco, num gesto que, tinha certeza, ele nem notara.
As luzes voltaram a se acender, e pouco depois ambos viam-se caminhando na direção dos portões principais do templo.
— Sabe, não tive tempo nem de comer. Pretendo jantar no Doce Tempero. Quer me fazer companhia?
O convite soou casual, mas Leonardo decidiu aceitar. Não deixaria aquela pobre alma sozinha justamente às vésperas do Natal. De mais a mais, ele também planejara jantar no Doce Tempero antes de voltar para casa.
— Claro. Por que não?
Como andar de carro, àquela altura, era mais complicado do que caminhar, eles se juntaram à pequena multidão. Localizado na parte principal de Juiz de Fora, entre a igreja e a universidade, o Doce Tempero era uma instituição na cidade. Começara como um bar simples, trinta anos atrás, e agora tomava todo o quarteirão. Ainda servia a mesma comida gostosa e barata, vinte e quatro horas por dia, e era o ponto preferido dos estudantes. Mas ali também se viam muitas famílias e casais maduros, cansados de freqüentar barzinhos.
Assim que a porta se abriu, Leonardo e Fernando foram envolvidos por um aroma intenso de chilli, tortillas, hambúrguer e café. Acomodaram-se no único espaço vazio do balcão. Sem se dar ao trabalho de consultar o cardápio, Leonardo pediu:
— Um café grande com bolinhos de canela.
Enormes e cheios de manteiga, os bolinhos de canela do Doce Tempero eram o pesadelo dos cardiologistas da cidade.
— Eu pago — disse Fernando.
Leonardo virou-se lentamente, a carteira já quase fora da calça.
Fitou-o e notou que ele não voltaria atrás naquela decisão.
Poderia argumentar, discutir, mas não tinha nenhuma vontade de fazer isso.
— Obrigado — limitou-se a dizer.
— Não há de quê.
Pediram os pratos quentes e, com as xícaras de café nas mãos, acabaram encontrando uma mesa vazia no terceiro salão.
Leonardo sentou-se.
— Obrigado por arrumar o portão e a torneira.
— Não é preciso agradecer.
Fernando abaixou a cabeça e dividiu os guardanapos. A voz dele soara áspera a seus ouvidos. Só o encarou quando teve certeza de que poderia enfrentar aquela súbita, mas controlada, mudança de humor.
— Marta me disse que lhe entregou os velhos certificados. Falou que você gostou deles e os queria para decorar o escritório.
Leonardo achara a história um tanto estranha. Mas talvez, concluiu, ele julgasse que, se Marta lhe desse algo, não se sentiria tão constrangida em aceitar ajuda.
— Decidi colocá-los num quadro, como curiosidade histórica. — Deteve-se ao ouvir o locutor chamar um número: o pedido que havia feito estava pronto. — Bem, vou buscar a comida.
Deseja mais alguma coisa?
— Não, obrigado.
Quando ele voltou, com a bandeja repleta, Leonardo desejou que houvesse uma terceira pessoa ali, para ajudá-lo a comer tudo aquilo. Além de nuevos rancheros com feijão e uma tigela tamanho família cheia de tortillas, havia um prato com picadinho, coberto de queijo e pimenta. Como sobremesa, torta frita. Era difícil acreditar que um homem pudesse comer tanto e manter a boa forma.
Mas, ao que tudo indicava, Fernando conseguia.
Leonardo cortou um pedaço do bolinho de canela e fechou os olhos para apreciar melhor o sabor.
— Hum... — Tornou a abrir os olhos. — Adoro isto aqui.
— Estou vendo.
Ele sorriu, fazendo com que Fernando sentisse mais uma vez a onda de calor e ansiedade com a qual já começara a se familiarizar.
— Minha filha também adora. Enviei-lhe alguns, como presente de Natal.
—Você ficou surpreso quando ela decidiu morar em São Paulo?
Leonardo fez um gesto negativo com a cabeça enquanto cortava outro pedaço do bolinho de canela.
— Victoria estudou em São Paulo, e percebi, assim que saiu de casa para ir à escola, que nunca mais voltaria... Para ficar. Ela nunca gostou do Minas Gerais. Odeia o calor e gosta de umidade. — Deu um sorriso amarelo. — Eduquei minha filha para que se tornasse confiante e forte, e não para ficar presa ao pai. Consegui. Azar meu.
— Deve ter sido difícil aceitar o fato de ela não poder vir para o Natal...
Leonardo fez uma careta.
— É verdade, mas... Bem, eu sabia que iria acontecer mais cedo ou mais tarde. — Contemplou a mesa e piscou incrédulo.
Os nuevos, uma das tortillas e o picadinho já tinham sido comidos. — Essa é a primeira vez que seu filho passa o Natal fora de casa?
— No ano passado, ele também não pôde vir, mas, como o navio estava ancorado em San Diego, tomei um avião e fui para lá. Mas agora Lucas está em algum ponto do oceano Pacífico, de modo que não há como ficarmos juntos.
Não havia nada naquela voz que indicasse como Fernando se sentia a respeito, mas uma sombra passou por seus olhos.
— Vocês dois devem se dar muito bem, depois de tantos anos morando e trabalhando na companhia um do outro — ele disse, curioso de saber o que acontecera à esposa de Fernando.
— É verdade, mas as coisas demoraram um pouco a se acertar.
— O que aconteceu?
— Minha esposa era alcoólatra. Procurei os programas de tratamento doméstico, hospitalização, aconselhamento, Alcoólicos Anônimos, separação... tudo o que esteve a meu alcance. Nada funcionou. Ela bebia, desaparecia de casa, teve um caso com o psiquiatra. Trabalhei em tempo integral e cuidei de Lucas durante anos. Desse modo, aprendi a respeitar muito as mães e pais solteiros. Por fim, só me restou pedir o divórcio.
— Oh, eu... sinto muito.
— Foi fácil obter a custódia de Lucas, mas ele tinha apenas doze anos e estava convencido de que era responsável pela mãe, uma vez que eu a deixara. Como a maioria dos viciados, ela fazia muita chantagem emocional. Sempre que eu levava Lucas para viver comigo, ele fugia e voltava para a mãe. Dei-lhe a casa, para que tivesse um lugar decente para morar e para receber nosso filho.
— Deve ter sido muito difícil...
— E foi, mas não tive escolha. Também foi triste tirar-lhe Lucas, porém não havia outra coisa a fazer. Ela era incapaz de educá-lo.
Fernando comeu um pedaço da torta e bebericou o café.
— Como conseguiu mantê-lo a seu lado?
Ele riu.
— Com as reformas nas casas. As despesas com os tratamentos de minha ex-mulher me levaram à falência. Fui viver num apartamento barato, de um cômodo só, e economizei para comprar a primeira casa. Saiu pela metade do preço porque precisava de uma boa reforma. Lucas costumava ir me visitar, e depois de algum tempo começou a me ajudar nos reparos. Passava três ou quatro noites por semana lá, até que acabou por se mudar definitivamente.
— Que bom!
— Foi mesmo. A reforma era algo que podíamos fazer juntos sem entrar em conflito, sabe? E reconstruir uma parede pode ser bastante terapêutico. Além do mais, viver longe da mãe ajudou-o a analisar com clareza o caso. Lucas entendeu que, por mais que a amasse, que tentasse ajudá-la, não poderia fazê-lo.
— E o que houve com sua ex-mulher?
— A família a convenceu a mudar-se para Michigan há alguns anos. Lucas mantém contato com ela. E diz que nada mudou.
— É uma pena.
— Sim, é. Sabe, descobri que o amor não acaba com o casamento — disse, pensativo. — Apenas muda. Você não ama mais, mas continua querendo bem à pessoa, importando-se com o que lhe acontece.
— Sei disso — Leonardo concordou suavemente.
Observou-o terminar a torta e o café. Aquele homem, felizmente, não era um divorciado compulsivo, carregando alguma expiação ou vingança. Também não desejava despertar simpatias ou chamar a atenção. Era uma pessoa forte, de caráter.
Uma coisa, porém, intrigava-o. Como a maioria dos homens, Fernando também não devia gostar muito de falar sobre sua experiência pessoal, em especial assim dolorosa, com tamanha franqueza. Por que escolhera justamente a ele para desabafar?
Leonardo sentiu-se emocionado com a confiança.
A maioria dos homens, depois de um divórcio traumático, costumava guardar rancor, amargura ou culpa. Não era o caso de Fernando, que aprendera uma das lições mais difíceis da vida: aceitar aquilo que não pode ser modificado. Estava em paz consigo mesmo; não se sentia uma pobre vítima do mundo. Seguira adiante e ajudara o filho a fazer o mesmo.
Leonardo o admirava por isso. Conhecia-o havia pouco tempo, mas o suficiente para saber que aquele homem possuía muito amor e afeição para oferecer. Era injusto que não tivesse ninguém com quem repartir esse tesouro.
Fernando olhou ao redor e quase riu alto. Atrás deles, duas criancinhas de aparência cansada, que já deviam estar dormindo há horas, falavam em voz baixa que não queriam ir para casa nem para a cama. Em outra mesa próxima, três homens conversavam entretidos.
Sim, aquele era o lugar apropriado para contar uma história de vida. Fernando não planejara dizer a sua, e não sabia ao certo por que o fizera, mas não se arrependia. Nessa idade, as pessoas têm uma bagagem e tanto para carregar. Já era hora de mostrar a Leonardo o que havia dentro de suas velhas malas.
Ele brincou com a xícara e fitou-o, um sorriso nos lábios.
— Não vai me contar sua história?
— Comparada a sua, a minha é simples. Quando me casei com a mãe de Victoria, ela era uma criança grande. Dez anos depois, continuava a sê-lo. Mas naquela época eu tinha uma filha de verdade para cuidar e precisava de um adulto a meu lado, não de uma garota. Decidimos nos divorciar antes que as coisas atingissem aquele ponto em que as boas lembranças são anuladas pelas más. Ela foi viver no Rio de Janeiro; Victoria e eu permanecemos aqui.
Não fora assim tão simples, ele sabia. Embora o conhecesse havia pouco tempo Leonardo, já percebera que ele era uma pessoa leal, capaz de proteger a qualquer preço aqueles a quem amava.
Não notara, contudo, nenhum traço de tristeza ou desapontamento em sua voz.
Deu-se conta de que Leonardo sabia, talvez desde o berço, algo que ele levara anos para aprender: que a felicidade era uma escolha, um ato de vontade, não uma condição natural. Chorar a alegria passada ou esperar a satisfação do futuro era um modo de não fazer esforços para ser feliz no presente. Ele lutara pela felicidade. E a conquistara.
Fernando estava prestes a perguntar-lhe se tinha planos para sexta-feira à noite quando o viu ajeitar o casaco, como quem pretendia ir embora.
— Pronto para partir? — perguntou.
Controlando a impaciência, lembrou a si mesmo que podia esperar. Mais cedo ou mais tarde, ambos acabariam juntos.
Isso lhe parecia tão natural quanto respirar.
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