domingo, 18 de dezembro de 2011

Um Presente de Natal - 6º Capitulo



Fernando analisou o cardápio colado à janela do café.
   A comida, lembrou, era medíocre, e havia fila de espera. Devia ter feito reservas em algum lugar decente, mas agora isso pouco importava.
  Virou-se, subiu  o  quarteirão e  atravessou a rua.  O Plaza Bakery não tinha filas, mas todas as mesas estavam tomadas, e nenhum dos clientes parecia disposto a sair dali tão cedo.
  Ele  olhou para  a  praça, a fim de encontrar algum banco vazio. Não conseguiu porque parecia que metade da cidade de Belo Horizonte decidira ir  para lá. Virou-se e  estudou a lojinha de alimentos baratos, poucas portas  acima. Embora não conhecesse a cozinha da casa, podia ao menos comprar uma boa torta frita.
  Caminhou pela calçada repleta de gente e olhou através da grande janela de vidro, esperando encontrar alguma mesa vazia ou um  lugar no balcão. Então um sorriso lentamente abriu-se em seus lábios.


  Leonardo olhou para  cima e parou de mastigar. Não contara a ninguém que iria até lá, nem mesmo a Marta. Assim, como Fernando o descobrira? Suspirou, resignado. Ele não tinha como saber. Era apenas uma simples coincidência. Ou outra punição.
  Na terça-feira, logo depois que ele saíra de casa, Fernando aparecera e trocara uma  veneziana para Marta. Em seguida, consertara a tela do banheiro de Leonardo e até deixara um bilhete, perguntando-lhe se queria jantar em Belo Horizonte na sexta-feira.
  Como Marta a avisara de que ele voltaria no dia seguinte, Leonardo escreveu-lhe um recado, em vez de ligar para um dos telefones que o bilhete indicava. Agradeceu-lhe por arrumar a tela e pelo convite, que não poderia aceitar porque já tinha outro compromisso. Também deixou uma nota de cinco Reais, para pagar a tela. Quando voltou, viu que ele havia levado o recado, mas a nota de cinco Reais permanecia ali, intacta.
   Fernando deu a volta no balcão, carregando uma bandeja. Leonardo acenou.
   — Então era aqui que você iria me trazer para jantar? — perguntou, divertido.
   Ele assentiu, movimentando a cabeça, enquanto abria o saquinho de bacon frito.
   — Aqui ou no Mc Donalds. Depois do café e dos bolinhos de canela, percebi que você é  o  sonho de todo homem: um homem que não custa caro.
   Leonardo lançou-lhe um olhar superior.
   — Pois eu não aceitaria ir a nenhum lugar que não tivesse a sofisticação do Golden Bucket— contra-atacou-o, referindo-se a um dos restaurantes mais caros da região. E se perguntou, curioso, se ele havia considerado o jantar no Doce Tempero um encontro.
   — Está bem, eu me rendo. — Sorriu.
   — Você já  assistiu a algum  espetáculo Estrela de Belém?  — perguntou Leo, dando-se conta, de  repente, de que se sentia aliviado por Fernando não ter convidado outra pessoa para sair, apesar da negativa que ganhara dele.
   Estudou-lhe o velho jeans e  a  igualmente velha jaqueta  de brim, revestida de flanela, por sobre o suéter  de marinheiro que acentuava os olhos Verdes  e  contrastava com os cabelos meio grisalhos. Em seguida, viu-o balançar a cabeça.
   — Vi alguns em Juiz de Fora.
   Pela janela, podiam observar a multidão comprimir-se  lá fora. Estrela de Belém era uma tradição natalina que começara em Portugal, durante a Idade Média, e fora levada para  Minas Gerais pelos conquistadores quatro séculos atrás. Tratava-se da encenação  da  caminhada que Maria e José haviam empreendido em Belém, em busca de uma estalagem.
   Às sete horas  em ponto, dois homens,  carregando tochas acesas, abriram a procissão, que percorreu lentamente a praça.
Maria, sentada no lombo de um burro, e José, a pé, seguiam-nos, enquanto o coro entoava canções de Natal.
   Leonardo não percebeu como, mas Fernando avançou por entre a multidão até atingir  a borda da calçada.  O aglomeramento obrigou os  dois corpos a  permanecer praticamente colados, o que provocou uma onda de calor e prazer em ambos.
   José detinha-se a todo momento, pedindo, nas "pousadas", um lugar para  hospedar a esposa, mas era expulso aos berros.  O demônio, vestido de vermelho, com os tradicionais chifres, rabo em forma de seta e tridente, corria por entre a procissão, tentando os estalajadeiros, ameaçando José e Maria. A audiência protestava e dava apoio moral ao casal,  que, ao bater à última porta,  conseguia instalar-se. Todos aplaudiam e os seguiam.
   A "pousada" que os aceitava era na verdade o pátio do Palácio dos Governadores, construído havia três séculos e que atualmente abrigava um museu. Lá, serviam-se biscoitos e chá quente aos espectadores, e Leonardo sentiu-se grato quando Fernando colocou uma xícara em suas mãos geladas. Um violonista começou a tocar canções natalinas, que todos cantaram juntos.
   Leonardo levantou a cabeça,  sorrindo para seu acompanhante.
E  o fez por um único motivo: estava feliz. Devolvendo-lhe o sorriso,  ele colocou um braço em volta dos ombros.
Relutante, puxou-o para si. Ele não ofereceu resistência, e Fernando chegou a pensar que isso se devesse à proteção que o abraço oferecia contra o frio. Ou Leonardo também estaria desfrutando daquele momento de intimidade?
   Como não podia envolvê-lo com a intensidade desejada, ele se contentou em beijar-lhe os cabelos suavemente. Fechou os olhos e inalou o perfume que vinha daquele homem amigo, aberto, agradável, inteligente, bonito. Provavelmente, todos os homens e mulheres que o conheciam apaixonavam-se um pouco por ele. Fernando, por exemplo, já se apaixonara. Muito mais do que "um pouco".
   Abrindo  os olhos, ele riu  baixinho.  A revelação não o  surpreendeu. O sentimento na certa começara quando Leonardo lhe dera o primeiro sorriso. Lembrou-se de que fazia vinte e  sete anos que não se apaixonava. E, para ser sincero, nunca experimentara algo tão bom e tão profundo. Apesar de sua natureza impaciente, dessa vez tinha vontade de agir devagar. Queria saborear a beleza, a maravilha daquele sentimento.
   Quando a apresentação terminou, a multidão começou  a se dispersar. Leonardo sentiu o braço masculino retirar-se de seus ombros e disfarçou um suspiro.
   — Vamos passar num café antes de voltar? — ele perguntou, colocando as mãos nos bolsos do casaco. — A propósito, você está pensando em ficar por aqui ou ir para sua casa?
   Leonardo também enfiou as mãos nos bolsos do casaco. De seu casaco.
   — Pretendo estar em casa ainda esta noite. — Dirigiam-se para a praça, atrás  de um jovem casal  que carregava dois filhos no colo. — Sabe, às vezes, tenho vontade de cuidar de crianças pequenas de novo.
   Ele deu uma risada mansa.
   — Eu também.
   Contemplou-a com carinho. Os cabelos bagunçados dando mais vida ao sorriso bonito. As faces, coradas pelo ar frio, destacavam os olhos, que brilhavam intensamente à suave luz da rua. Fernando se afastou um pouco, para estudar o corpo bem-feito, as pernas longas que se insinuavam no jeans justo.
   — Nem todas as pessoas querem ter netos.
   — Algumas acham que são provas de que estão envelhecendo. — Leo deu de ombros. — A mim a idade não incomoda. Não me preocupei  com a chegada dos trinta anos  e nem sequer notei quando completei quarenta. — Fez silêncio por um instante. — Mas vou ficar aborrecido quando fizer cinqüenta e um.
   Fernando lhe lançou um olhar divertido.
   — Por que cinqüenta e um? Por que não cinqüenta?
   Leonardo riu.
   — Oh, bem... Porque decidi que vou viver cem anos, e quando fizer cinqüenta e um terei de admitir que metade  de minha vida já passou...
   Fernando também riu,  abrindo a porta do café. Aquele homem era realmente uma simpatia.
   Leonardo  estudou o ambiente depois  de  se  acomodar na  mesa indicada  pelo garçom, ao lado da lareira. O  bar ficava num dos hotéis mais caros de Belo Horizonte. E, a exemplo do que acontecera no jantar que  haviam dividido no Doce Tempero, Fernando pediu vários pratos diferentes. Que apetite!
   — O que  você vai  fazer no Dia de Natal?
   — Vou jantar com a família de uma amiga. E você?
  — Pretendo ir até a casa de minha irmã e de meu cunhado, em Juiz de Fora. Voltarei depois de amanhã, dia vinte e seis.
  "Se ele não tivesse programa, eu o convidaria", pensou Fernando.
"E minha irmã desmaiaria ao me ver com um Homem." Lembrou que Leonardo lhe contara que seus  pais ainda viviam em Juiz de Fora.
  — Quer  dizer que este ano não irá visitar a família?
  — Eles estão fazendo um cruzeiro pelo Caribe. Minha irmã me convidou para ficar alguns dias em sua casa, em San Diego, mas prefiro passar o Natal em casa.
  — Eu também — ele murmurou, olhando para o saguão do hotel. Certamente, não havia a menor chance de convencê-lo a passar a  noite ali.
  Leonardo reclinou-se, para saborear melhor o café. Com o calor da lareira,  o ambiente se tornava cada vez mais agradável e acolhedor. Ele nem sequer queria pensar em ir embora. Mas... e se não fosse?
  Ao se dar conta de que preferia ficar no hotel, ao lado daquele homem, a ir para  casa, Leonardo se assustou.  Controlou-se ao máximo e endireitou o corpo, terminando a bebida.
  Fernando interpretou o gesto como um sinal de que ele desejava partir. Tirou a carteira do bolso e deixou vinte Reais sobre a mesa, para pagar a conta.
  — A gorjeta é minha — Leo disse, tirando algumas moedas do bolso e  colocando-as na bandeja. Saiu, acompanhado de Fernando. Uma vez lá fora, fechou o casaco, protegendo-se da queda de temperatura. — Uma tempestade vem aí.
  — E vai chuver pela manhã.  Onde você estacionou o carro?
  — No final do quarteirão.
  O vento  gelado fez com que ambos  se apressassem em ir até lá.  Segundos depois, Leonardo  destravava a porta do automóvel. Tremeu de frio ao virar-se para dar boa-noite.
  Fernando desdobrou-lhe a gola  do casaco  e levantou-a, para que lhe cobrissem as orelhas. Depois, levou as mãos aos ombros de Leonardo.
  — Você vai pela rodovia ou  por dentro da cidade?
  — Por dentro. É mais rápido.
  Ele o puxou para mais perto.
  — Vou segui-lo.
  — Isso vai tirar você de seu caminho — argumentou ele, levando as mãos ao peito largo.
  — Não importa — ele respondeu, diminuindo ainda mais a pequena distância que os separava.
  E então o beijou. Um beijo profundo, maduro, intenso, como Leonardo jamais conhecera. Abraçou-o com força e sentiu os braços dele em volta do pescoço. Um arrepio de prazer o percorreu.
  De repente, ouviram um  ruído metálico e agudo. Tratava-se do alarme de algum carro próximo. Ou talvez fosse o alarme interno de ambos, avisando que, se não parassem naquele momento, não conseguiriam fazê-lo tão cedo.
  Fernando chegou a considerar a hipótese de levá-lo de volta ao hotel ou fazer amor no banco traseiro do carro. Não esperava que um simples beijo pudesse acender daquela maneira o fogo da paixão.
  Com uma força de vontade até então desconhecida, afastou-o ligeiramente. Leonardo o deixou ir com certa relutância.
  — Leonardo... — ele sussurrou. Os olhos dele abriram-se lentamente  e contemplaram-no com  um brilho que  quase  o fez gemer. — Dirija com cuidado. — Beijou-a de leve antes de abrir-lhe a porta do veículo.
  Ele  assentiu com ar solene,  entrou e deu a partida. Quando as lanternas do carro desapareceram na escuridão, Fernando virou-se e começou a caminhar na direção da caminhonete. Já havia andado dois quarteirões e meio quando se lembrou de  que estacionara o veículo a quatro vagas de onde Leonardo parará o dele.

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